sábado, 3 de abril de 2010

bebendo do blog antigo... junho/2006



Entrevista Com Georgette Fadel


Fonte: Portal da Cooperativa Paulista de Teatro



Portal da CPT — Dentro da sua trajetória profissional e da pesquisa da Cia. São Jorge de Variedades, como você vê o teatro realizado na rua?


GEORGETE FADEL — Isso é uma vida, não é? Quando eu penso numa coisa eu sempre e imediatamente penso também no contrário. E então as opiniões que eu emito sobre as coisas me parecem meio superficiais. Quando eu penso em teatro de rua, eu penso em festa popular, em teatro tradicional, em bumba-meu-boi, naquelas cheganças ou na festa do divino, que eu assistia nas festas de São João, em Laranjal Paulista, perto de Tietê, que tinha um clima... Era como se aquilo é que fosse a vida mesmo e, na verdade, todo o resto fosse a manutenção de um estado um pouco de dormência. Eu lembro muito do carnaval ou do natal em Laranjal, então sempre que eu penso em teatro de rua eu penso nessa onda, parece que eram os momentos felizes da minha vida.
Eram momentos de festa, literalmente festa — o que hoje a gente procura, por exemplo, indo a uma boate... mas não é a mesma coisa! Mesmo porque tem uma ingenuidade, nada assexual, pelo contrário, sexual pra caramba, mas é plenamente compartilhada por crianças, velhos, adultos, jovens, etc., onde tudo tem um aspecto teatral, inclusive brigas, conflitos, tudo ganha um aspecto festivo, colorido.
Então, quando eu penso em teatro de rua, eu já penso direto nessas paradas: maracatu, que eu vi no Recife, aquela vontade de dançar e cantar...


Nós somos a vanguarda


Portal — O Amir Haddad encara isso como um "teatro de celebração"...


FADEL — Uma celebração! Celebração da colheita, da vida, do acasalamento, da morte. Eu lembro do autofalante em Laranjal, por exemplo, tocando "Ave Maria" e anunciando o falecimento de fulano de tal. Eram coisas que me tocavam profundamente, eu passava o dia inteiro triste por conta daquilo. A festa junina no entardecer, a roda gigante...
Eu não comecei falando que eu penso numa coisa e já penso na oposta? Hoje, aqui em São Paulo, a gente pensa: ah, eu não quero fazer o tradicional; eu quero fazer o novo na rua. O que é que é a nova rua? O que é que é a dança da alienação, qual é a dança da urbanidade? Aí você pensa no hip-hop, manifestações também festivas mas amarguradas em algum lugar, de protesto, de luta, quase que pela sobrevivência, conquista de espaço, porque o espaço não está garantido. Pelo contrário, vai cada vez mais ficando mais restrito, difícil, parece que a gente está numa guerrilha e que a gente está num movimento de resistência. Mas a gente não está, não é?
O Celso Frateschi falou, uma vez, que "nós não somos a resistência, somos a vanguarda". A gente deveria ser temido! E acho que até somos, sabia? Por exemplo, essa coisa do programa municipal de Fomento ao Teatro, que alcança uma mini-fatia da produção teatral de São Paulo, a gente ameaçou ir para a rua, para protestar com fim do fomento, quando o Serra assumiu, na madrugada anterior eles chamaram a gente para conversar, voltaram atrás na decisão e o fomento, a trancos e barrancos, resiste e persiste — sempre fadado um pouco à crise.
Parece que, em algum momento, a gente vai ter que dar uma pequena enlouquecida e arriscar um pouco mais. Eu penso sempre na figura do Paschoal da Conceição, que, gostando ou não gostando, errando ou não errando, ele erra grande! Ele vai para a Câmara dos Deputados e diz: "eu sou Mário de Andrade e você vai ter que jurar, aqui na frente de todo mundo, que pá pá pá pá pá pá..."! Ele tem uma interferência política muito forte, ele acha que o teatro tem que ir até onde está o teatro, meu!
Nesses lugares públicos, nessa farsa toda que foi armada e os artistas, na verdade, são os únicos que não estão vestindo as máscaras. Está acontecendo uma inversão! Parece que a gente não está mais vestindo máscara, porque justamente a única máscara útil da gente vestir agora é a não-máscara, porque está todo mundo tão mascarado que você, ao buscar o seu eu profundo...


Portal — Você mostra a máscara do dito-cujo!


FADEL — Exatamente. Por isso que é um trabalho que é o oposto, não é?


Esmagamento econômico


Portal — O Alexandre Mate te considera uma das maiores atrizes de teatro de hoje em dia...


FADEL — Coisa de amigo!


Portal — Dentro da tua ética e da tua estética, da tua forma de ver o teatro, o acontecimento teatral, onde é que você está feliz e onde você se sente insatisfeita com o que se produz atualmente pelos grupos? Nós vivemos atualmente uma época de grupos, de novo, graças a Deus! Foi resgatada essa história. E a Lei de Fomento tem muito a ver com isso — ou então é resultado disso! A História é quem vai responder isso. Onde é que o teatro de rua está acertando e, principalmente, onde está pecando do ponto-de-vista estético?


FADEL — Eu não tenho a dimensão pra te responder de uma maneira épica. Vou responder intuitivamente, porque eu tenho assistido à minha própria experiência, a que eu acompanhei dentro dos albergues (e a nossa vontade é que o próximo espetáculo seja na rua), tenho assistido às interferências do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, tenho assistido ao Tablado de Arruar, ao Grupo XIX com a experiência lá na Vila Zélia. Então a minha visão é restrita.
Mas eu passo muito na Praça da Sé e fico observando aqueles vendedores, os caras que pulam no meio das facas, os caras que ficam fazendo desenho no meio da Rua 24 de Maio, o centro da cidade é extremamente... feira livre! Tem aquela pauleira, aquela coisa sonora maravilhosa que rola numas feiras livres especiais de São Paulo, mas mesmo assim uma coisa muito restrita perto do movimento teatral que rola.
Sinto que está rolando um esmagamento feio, que nos falta acabamento, que nos falta a possibilidade de uma dedicação, de um treino específico garantido, uma infra-estrutura, um local de ensaio, com possibilidade de acesso a cursos, a treinamentos, que a gente possa ficar o dia inteiro com aquele trabalho, com aquele grupo, e que isso responda às necessidades financeiras de cada um dos membros daquele coletivo.
Eu, por exemplo, trabalho em setenta mil lugares ao mesmo tempo. Em alguns momentos isso é perfeitamente viável e tudo se junta numa coisa só. Mas, em outros momentos, isso acaba com a minha possibilidade de me dedicar o suficiente a algum trabalho. Então eu tenho que ter ali tudo o que eu precisa ter, pro trabalho dar certo. Mas eu não tenho o tempo de aperfeiçoamento e a verba necessários para um acabamento, que me permita convidar profissionais que possam me ajudar a elevar a minha arte, num diálogo. Às vezes você tem que fazer tudo meio sozinho, porque você não tem como dividir nada com essas pessoas que viriam trabalhar com você se tivessem algum retorno financeiro. E com toda razão!
Chega um determinado momento em que a vida depende um pouco de você conseguir fazer a sua manutenção mínima na cidade de São Paulo. Eu sinto que a gente é esmagado economicamente. Você fica dependendo de uma insegurança muito grande, o que interfere muito na sua psiqué, pois você fica numa insegurança constante em relação ao futuro, de uma tal maneira que parece que você está sempre vendido.


Trampolim para o palco italiano?


FADEL — Eu estou tentando construir uma casinha lá pros lados de São Lourenço da Serra pra ver se eu consigo escapar dessa roda-viva da cidade... Tentar ficar alguns dias lá, plantando na hortinha, franguinho de lá, mel, arroz, tentar construir uma vida um pouco auto-suficiente pra poder ganhar liberdade...


Portal — Liberdade vem da auto-suficiência?


FADEL — Eu estou achando que a gente está começando a ser expulso da pólis! Não sei se algum dia a gente foi incluído, eu não tenho uma noção histórica tão ampla pra dizer sobre essa trajetória do artista. Mas eu sinto que o teatro tem uma força... A gente cresceu assistindo televisão e cinema americano, e muito pouco teatro (processo que vem de antes da gente nascer). A gente já nasceu diante de um teatro que parece que a gente é uma cópia mal feita de cinema e televisão, ou que tem algum pezinho ali. Então, a gente ainda está correndo atrás da força espantosa que o teatro pode ter.
Eu sinto isso quando a gente fala de sacerdócio, de disciplina, de impecabilidade desses guerreiros, de treinamento desse ator, de mente-corpo-espírito e tal... A gente vai indo, vai indo e vai indo. Mas quando a gente vai pra cena, a gente sente que a nossa expressão não está atingindo esse lugar tão sagrado da representação. Eu estou aqui jogando muita coisa fora, não é? Eu já falo e ao mesmo tempo eu já penso em acontecimentos teatrais...


Portal — Só pra você ter uma idéia, ao criar esse espaço virtual dentro do portal da Cooperativa Paulista de Teatro, voltado a quem pesquisa sobre teatro de rua, eu fui informado que no acervo da USP há apenas uma tese sobre o assunto. Isso reflete o que? Nós não temos uma visão acadêmica sobre teatro de rua. E política cultural, o que será que temos, além deste programa municipal de fomento ao teatro? Quem está sediado em municípios vizinhos à Capital, por mais que desenvolvam seus trabalhos também nela, não tem possibilidade de pleitear esse tipo de verba. E, a menos que inventem uma catraca em espaço público, teatro de rua não prevê bilheteria de forma alguma.
Por outro lado, para a iniciativa privada a falta de absoluto controle seu sobre a liberdade intrínseca ao Teatro de Rua na opinião do dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, pode muito bem inviabilizar patrocínios das grandes empresas. Somadas todas as edições da Lei de Fomento, o que se nota é que, proporcionalmente, embora plenamente merecedor, é muito pequeno o número de grupos de teatro de rua fomentados.
Não estará ocorrendo uma forma equivocada de a própria classe — que é quem (graças a Deus!) julga os projetos apresentados em cada edição — encarar o teatro de rua?


FADEL — Diante desse esmagamento todo, pequeno-burguês, o teatro de rua é historicamente desvalorizado como um teatro menor. Parece que o teatro, mesmo, é o do Stanislavsky, do palco italiano. Eu adoro ele, acho que ele deve ter sido maravilhoso, não é preconceito em relação a ele. Mas, quando a gente entra numa escola, das mais tradicionais, você começa a estudar teatro, sei lá, pelo realismo.
Você vai estudar o teatro de rua como algo alternativíssimo, como se ele não fosse teatro por excelência e o palco italiano ou da caixa fechada sim: a alternativa de teatro. Mas o teatro de rua é com certeza o ponto dos mistérios medievais, de muito antes dos gregos. Onde era feito o teatro? Então, existe uma desvalorização, ao mesmo tempo dialética, porque mesmo dentro da escola se diz que você só aprende a fazer teatro depois de fazer teatro de rua! Então quase que o teatro de rua é um treinamento para um ator poder fazer dignamente um teatro que interessa, que é o teatro da sala fechada! O teatro que tem o silêncio, que tem a luz, um bom comportamento do público, uma relação hierárquica com a platéia, que bota aquele talento todo e aquele jogo de cintura todo — que ele adquiriu na rua e, por causa da barulheira da rua, não pôde ser visto direito —, aí ele vai pra sala de espetáculo e bota um foco naquilo lá, silêncio, todo mundo comportado pra admirar a sabedoria daquele ator. Isso existe, sim.
Na verdade, teatro de rua é Teatro! Nos outros você bota o epíteto, o adjetivo necessário, entendeu? TEATRO. É na rua? É dentro da caixa preta? Ah, bom! Aí, teatro de rua já vem quase como sendo uma outra arte. O teatro, que significa algum lugar fechado, preto, essa coisa caixão, esquisitíssima que é, e o teatro de rua, que é quase um "apêndice" do teatro.
No nosso imaginário, nós que começamos a fazer teatro, às vezes, por pura vaidade, porque nós queríamos ser olhados, obviamente o palco italiano é a melhor opção, porque bota um foco na tua cara, com uma puta maquiagem e você fica lindo, andando de um lado pro outro. A gente sabe que noventa por cento dos atores entram em cena por isso: para serem amados. E nada melhor do que botar você ali, no pedestal, pra você ser amado.


Conviver com os miseráveis


Portal — O que é que, em essência, legitima o artista levar sua expressão teatral para o espaço aberto?


FADEL — Escuta! Qualquer pessoa tem legitimidade para ir pra rua e fazer o que quiser. Acho que isso é que é o tesão. Eu posso ir pra rua plantar bananeira e ficar ali, cinco mil horas, plantando bananeira, ninguém tem nada com isso. A rua é legítima por si só, mesmo dentro de uma estética teatral. Você tem o direito absoluto de experimentar qualquer tipo de coisa, acadêmica, não acadêmica, convencional, não convencional, festa, tragédia, a puta-que-pariu na rua!
A rua é de todo mundo, não tem essa. Agora, falando mais no sentido da classe teatral, o que é legítimo ao ir pra rua é que, ao ir pro teatro fechado, geralmente você está falando pros seus amigos, hoje em dia. Por baixo, cinqüenta por cento daquelas vinte, cinqüenta ou cem pessoas que estão sentadas na platéia pra te assistir estão se auto-alimentando, e às vezes criando processos de separação estética e ideológica e não de sociabilidade, entendeu?
Eu vou te falar uma coisa bem cafonona mesmo: quando a São Jorge foi para o albergue, o que a gente queria era conviver com os miseráveis, porque a gente sentiu que a gente não tinha linguagem, quase que não era mais a mesma espécie! O tamanho da nossa culpa, do nosso medo, dos sentimentos de inferioridade e superioridade envolvidos era uma coisa tão tremenda, que a gente passou pelo menos um ano, dos dois anos e meio que a gente ficou lá, tentando entender como se encontrar na diferença.
Coisas bem simples, como você saber que você tem sete calças no seu guarda-roupa, que você tem dez pares de meia e que aquela pessoa foi assistir a sua peça porque não tem meia e a sua peça tem fogueira, então ela vai lá pra esquentar o pé. Então, são relações muito loucas, de uma culpa muito grande, profunda e uma distância enorme, um vocabulário totalmente diferente, que até a gente se entender, ali, como ser humano, demorou muito.
A gente questionou, por exemplo, as relações de amor. A gente se apaixonou por albergados, rolou caso de amor por algumas meninas e isso, em nenhum momento, foi vivido, porque tem uma separação, uma impossibilidade do tesão, um perigo muito grande de um encontro amoroso entre a classe média e um miserável carrinheiro. Tem o problema do alcoolismo, que está ali no albergue e não vai poder te sustentar...


Portal — "Bastianas" conseguiu traduzir isso tudo?


FADEL — A gente passou uns perrengues. A gente não tem a dimensão de saber se o espetáculo conseguiu traduzir. O retorno do público é de que a peça tem uma sensibilidade diferente por ter sido gerada dentro do albergue.


Portal — Vocês apresentaram em outros espaços?


FADEL — A gente ficou em cartaz no Centro Cultural São Paulo, agora...


Portal — Mas e quanto a outros espaços livres, abertos?


FADEL — Apresentamos em algumas cidades, em praças não tão expostas ao barulho, em praças um pouco mais recolhidas, porque a gente não usa microfone e tem momentos mais delicados do espetáculo, então a gente tem um limite. Então, a gente sente que ganhou uma sensibilidade justamente porque o nosso coração abriu um pouquinho, ali, no sentido cristão-sofisticado — não no cristão-católico, burro, da culpa. O contrário, que é o da não-culpa. A gente conseguiu dissolver um pouco, entender um pouco a armadilha na qual nós nascemos.


Ampliando a própria realidade


FADEL — Eu nasci numa família, meu pai era malufista — agora, graças a Deus, abriu bastante a cabeça dele porque ele é um ser em transformação, maravilhoso —, mas eu passei a minha infância inteira sem ouvir falar nas histórias de ditadura, nunca participei das histórias desses presos políticos, dessas torturas, dessas histórias todas do país. Até os meus 16, 17 anos, eu sempre fui alienada. Quando eu vim pra São Paulo, comecei a fazer teatro.
Às vezes eu passeio pelo centro da cidade e me sinto uma estrangeira no meu país, sinto que o país é muito mais "daquela gente" do que meu, que fico passando de um teatro para outro. Então, essa legitimidade é dada pela vontade de conversar com as pessoas, de procurar as pessoas, os irmãos que estão na rua, os irmãos que não vão ao teatro. Estou falando de irmãos mesmo, porque a gente sabe que é aquele nêgo que não vai pagar nem dois nem dez reais. Não é questão de pagar, é que aquilo está distante da realidade dele. O que está próximo da realidade dele é a novela das oito, das nove e das dez, que é aquele alívio, aquele sossego do perrengue que ele vive o dia inteiro, vendendo coisa no semáforo e a puta-que-pariu.


Portal — E no entanto, a gente percebe que esse sujeito está super-aberto à magia... Proponha-se o elemento mágico que for, ele entra, ele embarca, ele aposta. Ele tem uma relação de "fidelidade" muito maior, grande parte das vezes, do que a dos amigos que vão assistir a gente...


FADEL — Claro! O que dá legitimidade é o fato de ter uma grande parte da população que está ali e quer falar com eles, simplesmente. E isso é mais do que legítimo. Eu quero falar com eles e vou lá pra rua pra falar com eles! Na verdade, falar o que interessa, onde interessa falar. Dentro do aspecto da diversão, veja como é divertidíssimo fazer essa festa, essa história na rua. É mais divertido quando pega um negócio na rua do que quando pega no palco. É mais divertido! Não sei... parece que aquilo está totalmente atrelado à pulsação da Vida... você não precisa se isolar da vida pra realizar essa magia. Você pega o nêgo no momento mais da vida dele e, dentro daquele caminhar dele, ele expande a consciência dele.


Portal — Dentro da própria realidade dele...


FADEL — Acho que isso tem um valor. Uma coisa é você se arrumar pra ir pro teatro e outra coisa é o teatro invadir a essência do seu ser, invadir o teu almoço, estetizar o teu cotidiano. Eu estou falando de mais ou menos valioso, tralalá, isso é uma grande bobagem, eu sei. Mas como a gente não tem um vocabulário pra falar, a gente acaba às vezes comparando. Mas não é uma questão comparativa.
Pra valorizar o teatro feito na rua... olha só, quando você vai e se senta no metrô, esse teatro de todos os dias, é uma delícia ficar olhando pras pessoas, tentando imaginar o que elas estão pensando, essa velha história, isso é o que interessa, porque, na verdade, se nós fôssemos realmente felizes e sofisticados seres humanos pacíficos e amigos e amantes e aquela paz e aquele paraíso sonha, teatro seria uma coisa simplesmente de 24 horas por dia!
Dança seria isso aqui que eu estou fazendo, a minha dança! Ou como eu falo ou como eu estou aqui vestindo essa máscara e falando com você. Ou seja, seria simplesmente o modo de as pessoas existirem. O que eu gostaria mesmo era de acordar dançando, cantando, tocando, fazendo teatro, pondo e tirando máscara e tal, e fosse dormir feliz. Fosse isso! Escolher o prato, o que comer, as cores, a organização do prato, onde eu vou, onde eu não vou, como eu caminho o meu andar, pra dentro, pra fora, o penteado que eu faço, como eu falo "oi", o meu sotaque, a minha maneira de tudo, não é? Eu tenho muito mais vontade da Arte por aí do que a arte do gênio ou daquele que inventa alguma coisa...


Sementes sobre a pedra


Portal — Será que há algum artista, que tenha se sentado, acendido um cigarro ou um incenso, colocado uma música de fundo, se isolado e decidido: "vou criar uma obra-prima que me transformará num gênio", Fadel? Não creio. Penso que ele, no máximo, coloca ali, naquele espaço-tempo, com todas as fibras do seu coração, tudo o que precisa dizer pro mundo. Mas é quem recebe o recado, seja lá quem e porque for, que o compreende e o considera "gênio"...


FADEL — Exatamente! Mesmo o Stanislavsky, o Brecht e todos esses coitados, que ficam submetidos à nossa mediocridade, de não digerir as coisas e cagar a nossa própria bosta, entendeu?
Não, a gente já cata e vomita. Aí, então, o coitado do Stanislavsky, na legitimidade dele, lá no teatrinho que o pai dele montou pra ele, na casa dele, estava lá, fazendo as experiências que cabiam a ele, e que a gente deveria considerar como experiência de uma pessoa, numa determinada época, e que nos servem como exemplo de como é possível experimentar com profundidade... sabe? Isso devia legimitar a nossa liberdade.
Não, aí o cara vem e é criticado, é descritidado, é amado, é louvado... puta-que-pariu! Às vezes a gente perde uma vida inteira falando sobre uma vida que já passou e não cria a continuidade dessa vida, dessa semente. Você fica ali, estudando a semente, não bota ela em terreno fértil pra gerar o fruto. O cara lutou a vida inteira pra ser uma semente e aí a gente pega e põe essa semente em cima duma pedra, pra ficar observando ela. O negócio não vai dar nada!
É claro que deu milhares de frutos pra quem soube olhar. É que nem essa discussão sobre teatro-dança. Que coisa irritante. Meu!
Boa dança é teatro e bom teatro é dança...! Boa vida é dança, boa música é dança! Eu estava vendo um vídeo daquele grupo inglês, acho que se chama DVDez, que fez uma coisa chamada "Peixe Estranho". É um monte de bailarino com um humor tão sofisticado, muito teatrais, muito bons atores no sentido do jogo, em termos de relação, uma conexão muito boa, bons atores não no sentido diva, mas no que toca à comunicação entre eles. Muito teatral. E eles vão escarafunchando umas merdas do ser humano, do amor, de relação, sem uma palavra! Só com relação corporal, um negócio alucinante. Quem vai vir me falar sobre teatro-dança?
Deixa criar, deixa abrir! Teatro? Dança? Não importa. Interessa que isso aqui eleva o ser humano, me pega por uma coisa que eu vejo todo dia. Meu! Eu olho e digo: é assim, é isso aí, mesmo. Eles conseguiam relevar as leis do movimento amoroso: rejeições, atrações, os conflitos, superbonito mesmo. Então esse negócio de "teatro pra isso, teatro pra rua", etc., eu acho um saco isso tudo. De repente, isso pode até tolher... Vai e faz!


O jogo está no jogo!


Portal — É possível levar um "Romeu e Julieta" ao pé da letra, sem parecer, por exemplo, se tratar de uma montagem para palco apresentada na rua, sem considerar o diálogo com o espaço...


FADEL — O próprio Sheakespeare não fazia o teatro dele, com o barulho do rio, os atores tendo que ter potência pra encarar aquelas pessoas gritando, comendo e aplaudindo no meio? Talvez tenha sido até mais árduo ali do que até o teatro de rua, hoje, no meio da Praça da Sé.
Hoje sabemos que era um espaço aberto, com um palco que invadia o público, ou seja, não era um palco chapado, com muita barulheira da cidade, não é? O rio, tudo ao redor não era uma coisa silenciosíssima, com o público se manifestando, metendo o bedelho... então, imagina esses atores! A gente tem, no mínimo, um híbrido aí. Não era um teatro em palco, entendeu?
Então mesmo isso dá pra você desconfiar. Eu faço "Romeu e Julieta" onde o meu coração mandar, onde esse caminho tiver um coração! Não precisa de autorização, eu acho mais do que possível. Mas obviamente isso não deve ser feito por uma atitude "experimental", "heróica" no sentido de "ah, eu vou ver se é possível", dentro de uma visão acadêmica. Não, tem que haver uma postura de "eu gosto pra caralho deste texto, acho esse texto lindo, acho que funciona, tenho a maior vontade de fazer essa história de amor na rua, numa cabana em cima duma árvore, porque eu gosto do texto, acho que vai pegar", sabe?
Não por um experimentalismo vão, mas por uma vontade real de artista. Não por uma vontade de pensador, mas uma vontade de artista, de brincar com aquilo, de jogar aquilo como uma bola mesmo, um jogo. O que mata muito a gente são essas experiências intelectuais com o teatro. Não é aí que está o jogo. O jogo está no jogo! Não interessa muito a regra... É tão divertido ver um jogo de tênis como ver gente pulando a cavalo, quanto ver uma formiga se afogando numa poça, é tudo interessante, contanto que o jogo esteja vivo.
Isso é que vai matando... Dizer que teatro de pesquisa é chato não é verdade, porque o jogo proposto por essa pesquisa, por mais que não esteja pronto, se está vivo é um tesão de ver. Você vê risco, gente experimentando em risco. Risco intelectual não existe! Quem fica pensando não se coloca em risco. Quem vive em função do que pensa se coloca em risco.
Mas você tem que ter ação radical em relação àquilo que você pensa. É aquilo que está no prefácio do Artaud: "foda-se qualquer filosofia que não seja prática", que não seja o seu modo de viver, aí não é nada. Pelo contrário: é um cadáver mesmo. Então, esse teatro que entra em cena pra pensar é chatíssimo... Ir pra rua pra estudar a rua? Não! Ir pra rua pra jogar, pra fazer o samba rolar!


Política pública é arremedo


Portal — E qual é a desse novo trabalho que a Cia. São Jorge de Variedades está querendo levar para a rua?


FADEL — Ah, a gente está sentindo um "Dom Quixote", sabe!? Acho que a gente vai sair com uns cavaleiros da triste figura... E talvez nós dez, onze ou doze, vamos todos estar em cena como dons quixotes brigando com outdoors ou fazendo declaração de amor pra postes de luz, pra lua, pra Mãe Terra... Eu estou ecológica, com muita vontade de ser ecológica...


Portal — A direção vai ser tua?


FADEL — Escuta, eu quero entrar muito forte como atriz. Eu estou devendo isso pra São Jorge, porque nas "As Bastianas" o processo com certeza foi delicado, primeiro porque é um espetáculo que eu não dirigi, foi o Luis Marmora quem dirigiu, o que significou pra mim um momento de adaptação. Agora eu queria entrar com mais força desde o começo. Ou talvez dirigir, não sabemos ainda! Talvez haja uma direção coletiva, acho que a gente está com uma maturidade pra conseguir isso, inclusive, por exemplo, com cada um dirigindo um trecho do espetáculo, criando uma multi-linguagem, sem uma unidade estética, mas uma unidade conceitual justamente nessa colagem.
Mas a nossa vontade é ir pra rua, assim como a gente foi para o albergue, porque a gente estava sem teto mesmo! Então a gente se albergou. E a gente agora está indo pra rua exatamente porque nos parece que não há outra saída. De alguma maneira, a gente está sentindo que um isolamento vai acontecendo. Está tudo lindo: a gente tem quatro espetáculos prontos mas não tem um tostão, a gente só tem dívida. Então beleza, vamos passar o chapéu e pedir comida!
Nós vamos pleitear a Lei de Fomento, mas isso nos dá o que? Seiscentos, setecentos reais por mês, que, às vezes, eu gasto em gasolina pra vir três vezes por semana a Santo André, ou mesmo em transporte coletivo, ou seja, não sustenta. A gente está sentindo que, se a gente fizer uma ação mais potente, radical, mais forte, a gente vai ter um chapéu até melhor do que qualquer... sabe, a história da auto-suficiência?!


Portal — A Cia. Bonecos Urbanos, por exemplo, descobriu e formou um público no Parque da Água Branca, segundo eles, com chapéus consideráveis...


FADEL — Exatamente. Tesão! Esse negócio de política pública é também um arremedo, não é? O Estado tem que assegurar os artistas?


Portal — Depender disso é um arremedo...


FADEL — E a gente depende! E fica tentando aprovar lei, papapá e um monte de coisa e tal, porque não tem jeito, porque se não tiver isso o nosso público não nos garante. Se a gente resolve cobrar 20 reais, quem vai? Eu já não posso ir! A classe média já não pode ir por 20 reais. Não está dando mais pra comer fora, quando você precisa. É um negócio que está se amarrando, então, você tem que cobrar aqueles 10 reais, meia é cinco, e se você tem cem pessoas, você tem 500 reais, então você não paga nem um ator com uma apresentação. Às vezes é raro você colocar cem pessoas ali dentro, então o negócio vai se amarrando, você não vive da sua bilheteria...


Portal — E aí você olha pra rua e vê que ela está cheia de gente...!


FADEL — Então vamos pra lá! Se todo mundo der 1 real... sabe assim? Pode ser que eu esteja falando uma grande merda quando falo sobre essa coisa da auto-suficiência, mas a vontade que dá é a da gente fazer uma coisa tão potente, que a própria população precise e nos queira e nos alimente com seus 2 reais ou 50 reais ali, no nosso chapéu! E que a gente possa ter a coisa da política pública, mas sem depender única e exclusivamente dela, pra não quebrar as pernas como a gente quebra quando não pega o Myriam Muniz, o Petrobrás nem nada. A São Jorge não pegou nada!
O que acontece? A gente se amarra e a nossa produção fica capenga. Aí vai virando uma bola de neve, porque com uma produção capenga a gente não consegue pagar uma produtora, não consegue vender, não consegue fazer a manutenção dos espetáculos... A coisa vai ficando pobrinha, no mau sentido, porque o espetáculo foi concebido com uma determinada luz e tem que ser feito com dez refletores porque você não consegue mais alugar! Então aquilo fica ruim e os nêgo não pagam bem, também! Tudo começa a ficar bem esquisitão.


Retomar a verdade do mundo


FADEL — A gente precisa ir reconquistando esse perigo, essa diferença com o cinema e a televisão, corpos super-prontos para a expressão forte, pra que seja impossível não parar pra olhar, que seja impossível não dar o que se tem na carteira pra esses nêgo! Sabe assim? Batalhar pela excelência do nosso trabalho, que a gente já batalha, mas cada vez com mais afinco? Pra gente reconquistar o apoio maciço popular. Maciço! Eu estava vendo naquele livro do Nerino, sobre circo, quando um circo saiu de uma cidade e aconteceu um monte de suicídio.


Portal — A vida esvaziou...


FADEL — A cidade estava acostumada com aquilo, lá. Eles estavam lá há muito tempo e tiveram que sair de lá, por algum motivo, e aí rolou um monte de suicídio na cidade.


Portal — É magia!


FADEL — As pessoas se matarem porque não têm aquilo, porque de repente a vida perde toda a significação, se não for dançada, cantada e vivida nas suas potencialidades de máscara. Eu sinto que é aí que está a força real. Aí é que está a magia mesmo. Só que a nossa sociedade está toda organizada contra a magia. Tanto é que o feminino, na nossa sociedade, está cada vez mais fora da parada. As bruxas não estão soltas! Outras bruxas é que estão soltas...
Eu estou sonhando algo, estou sonhando lá no paraíso, mas você paga o que for porque você precisa daquilo — não como uma droga, mas como a visão aberta, a possibilidade da alegria, da colheita do trigo, de fazer a comida, cantar, botar aquela pitada daquele tempero especial...
E a gente está na cultura do fast food, não é? Totalmente na contramão. O fast food não dá dinheiro pra gente, então a gente vai pro estrado! E o nosso Estado é o que é. A gente está vendido, como eu comecei a conversar com você. Todos nós estamos vendidos. A gente precisa lutar pra garantir alguma liberdade, lá no fundo das nossas consciências, porque tem os filhos pra sustentar e o perigo de amanhã não ter essa comida.
A maravilha do teatro de grupo está aí, porque eu sei que, se eu passar fome, vou bater lá na sua casa e você vai ter certeza de que seus filhos nunca vão passar fome porque você vai bater lá na minha casa. Agora, em algum lugar, tem o risco de todos nós empobrecermos a um determinado ponto que a gente não tenha na casa de quem bater, ai! Puta-que-pariu, será que isso vai acontecer?
Não, não vai acontecer porque somos-muitos-somos-fortes, somos-muitos-somos-fortes! E parece que a gente está guerreando contra alguma coisa, e a gente está: contra essa mentalidade não-mágica, não-religiosa no sentido elevado da palavra religião...


Portal — Sagrado.


FADEL — Eu sinto que é aí que está a nossa força: na retomada da verdade sobre o mundo. O mundo não é um monte de matéria acumulada, até os cientistas sabem disso, pois já estão começando a admitir uma inteligência organizadora e presente nos elementos.
E na cidade a gente não tem terra boa, não tem ar bom, não tem sol bom... entendeu? Aí realmente a magia é colocada embaixo da avenida 23 de Maio, é encarcerada aqui embaixo da avenida dos Estados, os nossos rios, as nossas águas estão todas debaixo dessas avenidas masculinas, desses viadutos, dessas coisas, não é? Então a arte vai junto com esses rios! Tanto é que, muito simbolicamente, o Teatro da Vertigem vai para o Rio Tietê, porque existe uma comunhão muito grande entre o teatro e essas águas apodrecidas que, mesmo assim, resistem e continuam correndo, e tudo o mais.


Entrevista concedida a Carlos Biaggioli, em 10/06/2006,
na Escola Livre de Teatro de Santo Andre (SP)


posted by Núcleo de Teatro de Rua ELT at 9:12 AM

Nenhum comentário:

Postar um comentário