Teatro de Rua na Escola Livre de Teatro
Por Antônio Rogério Toscano (em 2005)
A criação do Núcleo de Teatro de Rua na ELT, em 2002, respondeu a necessidades antigas, que acompanhavam a Escola desde a sua formação: abrir franco diálogo com a cidade, ampliar a área de atuação dos processos artísticos e, com isso, irradiar idéias geradas pelo contexto pedagógico, para que o trânsito de materiais teatrais provocadores reverberasse e constituísse novos fluxos de inquietação e criatividade: ecos que interfeririam em novas fronteiras, influenciando no surgimento de outras camadas de ondas de liberdade, muito mais democráticas, por toda a cidade.
Mas um projeto como este, à época um tiro no escuro (como sempre, a ELT é um laboratório de experiências imprevisíveis), não tinha uma cara pré-estabelecida. Nunca tínhamos experimentado deste sabor, senão em algumas apresentações trazidas à cidade, em espetáculos que detinham a sua própria natureza poética. E, mais uma vez, como sempre foi a prática da ELT, não havia interesse em reproduzir modelos. Pelo contrário, os moldes da tradição, importantíssimos para nós, seriam tomados como referenciais, apenas.
Enfim, o que seria feito? Teatro de rua. O que é? Quais são as especificidades desta linguagem? Trata-se mesmo de uma linguagem? Seus códigos são definidos? Quais são eles? Quem os definiu e em que situação? Quais são os possíveis teatros de rua? Há outras definições teóricas, dissidentes, igualmente válidas para sabermos o que pode ser, conceitualmente, esta manifestação cênica? Contradições a serem exploradas? Qual a diferença disso tudo que se vê como "teatro de rua" para outras possibilidades poéticas, como a de um "teatro na rua"? Ou de um "teatro com a rua"? Talvez um "teatro para a rua"...
Tantas questões foram os pontos de partida para as investigações, que apontariam para rumos bastante inusitados, aliás. Alguns relatos a este respeito foram publicados nos Cadernos da ELT de 2004, quando os primeiros filhotes deste núcleo começaram a nascer. Cenas, exercícios de dramaturgia, debates foram moldando o tom do diálogo.
Implicações de cunho ideológico começaram a se desenhar com mais clareza. Preocupações sociais ficaram mais explícitas. Temas passaram a reger as planilhas de criação. O menino-falcão, pequeno traficante que tem os dias contados, "prazo de validade", e que permite estabelecimento de foco nos paradoxos da vida contemporânea na favela, foi escolhido.
Cada um dos braços deste Núcleo (criado como hidra, ou como rede interligada, em que transbordamentos da dramaturgia pudessem brincar, em processo colaborativo com a cena - fiel da balança na experimentação de recursos técnicos vindos da prática do circo, e assim por diante) passou a lidar com as possibilidades deste mote.
No eixo da dramaturgia, o tema angariava recursos para culminar em cenas: a miséria, associada ao abuso do poder de policiais e de poderes paralelos, numa sociedade fetichista e movida pelo espetáculo como a atual, impulsionava que se compreendesse a vida como mercadoria, em explícito processo de coisificação do humano.
Nos trabalhos com circo, formas corporais inusitadas eram estudadas para ampliar o repertório do ator diante da fábula e do debate proposto. A cena: lagoa em que desaguavam os diversos rios de experimentos e reservatório de que escorriam novas correntezas criativas.
O local de trabalho: a praça Rui Barbosa, onde fica o Teatro Conchita de Moraes - nossa casa. Este laboratório, que faz a ligação do nosso espaço com a cidade, já era utilizado para ensaios, mas nunca com este radicalismo. De fato, a extensão direta da ELT é uma praça, em que foram planejados ensaios sob o sol quente da tarde.
Uma proposta de cena em que Deus e Diabo disputam a cabeça do menino-falcão foi experimentada naqueles gramados. A cabeça do menino era a bola de futebol da disputa entre arcanjos e demônios, narrada com a comicidade de quem aposta no jogo como única saída para uma teatralidade verdadeiramente potente.
Atritos criativos, muito bem-vindos (já que Kil Abreu, então coordenador do projeto ELT, construíra o núcleo inspirado num tripé bastante peculiar, formado pelos artistas Luis Alberto de Abreu, Marcelo Milan e Claudia Schapira), fincaram-se como combustível para o processo, que chegaria à estréia com A saga do menino-falcão, texto publicado pelos Cadernos da ELT de 2005.
De Luis Alberto de Abreu, o Núcleo recebeu a vasta experiência com a comédia popular e com premissas dramatúrgicas experimentais. Sua preocupação era justamente a de estabelecer critérios para a formatação (junto a aprendizes de dramaturgia para a rua) de textos teatrais próprios para esta dinâmica.
A passagem apressada de transeuntes pelas cenas indicava os caminhos de uma cena épica, recortada, em que cada pequeno trecho pudesse adquirir autonomia em relação ao espetáculo como um todo. Pois nem sempre o espectador esperaria para participar do jogo inteiro, do início ao fim de uma trajetória cênica. A rua é soberana e a pressa é uma de suas forças regentes, nestes terríveis tempos em que nos coube viver.
Usos de imagens e alegorias, de idéias claras e objetivas, de recursos cômicos, de firulas não-dramáticas que contaminam a cena com o frescor da surpresa e de efeitos espetaculares que desdobram sentidos incomuns (válidos por eles mesmos, sem a dependência de uma ligação causal com a próxima etapa do roteiro) foram alguns dos trampolins desta procura.
Da natureza circense do trabalho de Marcelo Milan viriam a acrobacia, os números independentes, o malabarismo, os vôos, as situações de risco, as imagens corporais coletivas e, fundamentalmente, o treinamento que traria o vigor necessário para a comunicação direta, básica em uma circunstância de rua.
Até aqui, as tendências combinavam-se de modo orgânico. A tradição popular em que se basearam as comédias comumente vistas nas ruas, desde fins da época medieval, em feiras e carrocerias itinerantes, dialogava direta e convergentemente com todos estes fatores em experimentação.
O exímio executor de truques cênicos da commedia dell´arte tornava-se, mais uma vez, interlocutor poderoso que norteava os caminhos da criação, na ELT. Anteriormente, a presença de Tiche Vianna, dos Parlapatões, Patifes & Paspalhões, de Ednaldo Freire e do próprio Luis Alberto de Abreu, dentre outros, na primeira fase da Escola, já apontava para o uso destes recursos como paradigmas de formação de intérpretes, especialmente com o uso da máscara e com os trabalhos com a comédia popular.
Mas havia outro pilar a sustentar o plano de ação: Claudia Schapira trazia à ELT sua pegada de rua muito mais próxima da intervenção urbana, desenvolvida junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos com referenciais urbanos da cultura hip-hop, em que o ator-MC, disposto a deixar sua mensagem através do rap (ritmo e poesia), pode contar com imagens do grafite, com street dance de b-boys e com desejo explícito de transformação social - a cultura de rua ganhou tons efetivos na periferia, como busca de um mundo menos desigual.
Neste canal da intervenção, alguns aspectos da teatralidade são substituídos: a representação cômica passa a conviver com a instância performática, em que uma espécie de "presentificação" altera completamente o trato com o espaço e com o tempo. Ao invés de cenários, a paisagem urbana constituída. Novas delimitações para a margem que separa o teatro da vida: as zonas autônomas temporárias, de Hakim Bey, e o desejo de instaurar a festa e dar suporte ao discurso/depoimento do ator, ato pós-político favorável à transformação da ordem vigente: enfim, a urgência das ruas, na chamada de Ned Ludd.
Ativismo poético (ou, nas palavras de Bey, terrorismo poético) que planeja mais desorganizar do que organizar: a ética antecedendo todas as escolhas estéticas. Tomar de assalto um espaço público e criar com ele uma relação inédita, que invista na resposta de um espectador que ganha de volta a sua função (não mais contemplativa) crítica e atuante, brechtiana: aí estava a resposta! Ou, pelo menos, uma delas.
Bertolt Brecht era o elo que unia formas díspares de lidar com o teatro (que não era mais de rua, ou para a rua, ou com a rua) e permitia que um tratamento crítico das questões se impusesse como flagrante de relações entre personagens próprios da cidade: o florescimento do imaginário de uma cultura popular urbana derivaria, sim, do confronto da festa da rua atual (como ela é) com as formas da tradição (como sempre foi).
E, desta busca, o surgimento de um novo Núcleo: o de Teatro Popular Urbano. A saga do menino-falcão, que teve coordenação de dramaturgia feita por Abreu e Schapira, resultou desta multiplicidade de fatores. Cada cena independente (aqui intitulada "procedimento") forjava um aspecto da vida curta do menino Gabriel.
A peça, iniciada com o cortejo fúnebre do menino-falcão, estabeleceu um hibridismo formal em que coros e falas à platéia sobrepunham-se a situações dramáticas efetivas. Alegorias como a do Sargento Mata (para que sutileza, afinal?) brincavam com a fala poética do coro de favelados: "Moro no morro/e por ele eu morro". Críticas à mídia deformavam as personagens, que ganhavam cabeças de televisão. Técnicas depuradas do circo traziam, em uma tirolesa de alpinistas circenses, o traficante colombiano.
Cenas curtas, informações precisas. Narrativa cênica direta, traçada em saltos, com utilização de um espaço múltiplo, móvel, que se modificava de acordo com cada situação cênica. O rap presente na fala melódica de atores que traçavam pequenos depoimentos poéticos, com percussão. A comédia popular como evidente matriz, na empatia do trabalhador ou no jogo cômico dos loucos que chegavam para confundir as certezas sobre o presente.
A próxima etapa: o desdobramento do Núcleo. A chegada de Roberta Estrela D´Alva, ainda durante o processo de montagem de A saga do menino-falcão, trouxe novos contornos para a presença da cultura hip-hop nos trabalhos. Isso definiu parte das resultantes cênicas e deu ao processo um caráter de intervenção urbana associada ao impacto da cena de rua.
Em nova chave, o Núcleo mostrava então a sua faceta mais constante: a capacidade de transformar-se, de mudar completamente seus referenciais para responder às necessidades dos novos aprendizes - e dos novos tempos. Foi por esta fase que a dimensão conceitual do trabalho ganhou o centro do debate e levou consigo esta condição transitiva para o processo. Eram tempos de estudos teóricos, de pesquisa e leitura.
Por isso, no momento seguinte, quando este Núcleo se abriu em três partes (quando o Núcleo de Montagem Circense criou espaço para uma pesquisa sólida, própria, sobre a tradição circense em E.L. Circo, em longa temporada na lona armada no Parque Prefeito Celso Daniel; e a dramaturgia voltou-se para a assombrosa construção de Narrativas de Passagem) seus novos formatos eram legítimos.
A pesquisa para Pequena falha no sistema de segurança (estreado em 2005; apresentado em Centros Comunitários da periferia, CESAs) surgiu orgânica, com a chegada de Ana Roxo, que é quem atualmente carrega este bastão como pesquisadora das relações entre forma e conteúdo de uma cena de rua.
Como na véspera da estréia de Pequena falha no sistema de segurança o espaço da ELT foi brutalmente invadido, assaltado e teve suas cortinas de veludo rasgadas; como o aviltamento das condições de trabalho respondia diretamente ao tema do espetáculo (uma família neurótica por segurança vive cercada por extrema vigilância; o resultado é que a própria filha mais nova, reprimida pelo excesso de medos, desembesta a destruir o sonho inútil de inviolabilidade), a escolha pelo novo tema de pesquisa é absolutamente compreensível: o Amor.
É neste ponto em que estamos, na passagem de 2005 para 2006. Como um território de pesquisa, este Núcleo não pode prever seu momento futuro com precisão. Sua transitividade é seu aspecto conceitual mais importante - e que, aliás, mais se aproxima do projeto ELT.
São a mudança e o rigor os fatores que impedem que os cacoetes (quando meramente reproduzidos como fórmulas prontas) do tradicional teatro de rua se reafirmem, em forma de macetes e de certezas mortas. É a busca de uma cara própria, de especificidades, que se torna escudo protetor contra o olhar envelhecido.
Em um mundo em que a cidade é hiper-espetacular, o teatro popular urbano enfrenta novos desafios: a presença apenas acidental, afirmada por cores festivas e truques cômicos, talvez não responda mais à complexa equação do presente. Em um espaço público cada vez mais privatizado, a democracia da rua se impõe como necessidade – como urgência poética. Em um tempo em que o espetáculo de aviões lançados contra torres de concreto armado é transmitido ao vivo para o mundo (ou quando curdos queimam seus corpos em praças públicas como forma de protesto), a tarefa da intervenção poética torna-se mais perigosa (justamente por ter que competir com estes novos códigos ativistas e/ou terroristas do que agora é espetacular) e importante.
Entretanto, para assumir o risco de trafegar pelo desconhecido é preciso que se tenha fôlego. Isso ainda se coloca como um desafio: nossos espetáculos precisam ganhar de fato a cidade. Para escaparmos do discurso vago e formularmos uma ação de irradiação, temos que nos dar conta da natureza ética da nossa busca poética. Ou continuaremos a pregar em praças vazias nossa doutrina vã, para não dizer ingênua (ou mentirosa).
A lição que a breve trajetória do teatro de rua na ELT nos deixa é a de que as formas de teatro de (na/para a/com a) rua são muitas e que, antes de mais nada, devem responder às necessidades artísticas de quem as cria, à formulação conceitual que opera em seus paradoxos internos, à provocação formal que responde aos desejos do discurso poético.
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Saturday, May 06, 2006
Heranças Antigas, Medievais e da Commedia dell'Arte
Por Ana Carolina Paiva
Atriz. Mestre em Teatro pela Universidade do Rio de Janeiro. Pesquisadora na área de concentração: Teatro e Cultura Popular
anacarolina.paiva@ig.com.br
(extraído da Etcétera Revista de Arte e Cultura - nº 17 - Nov-Dez/2004)
Inseridos dentro do enredo do Auto da Nau Catarineta, que é um espetáculo composto de assuntos graves, trágicos e religiosos - que ainda hoje fazem marejar os olhos de velhos brincantes - os personagens Ração e Vassoura "roubam" a cena em determinados momentos deste auto, onde desempenham papéis de destaque. Não existem dúvidas de que a principal característica desses dois personagens seja a comicidade. Utilizando-se desta característica, os dois personagens levam o público a desfrutar de situações hilariantes, causando-lhes grande alívio numa espécie de pausa cômica, em meio àquelas terríveis catástrofes marítimas.
O elemento cômico dentro de uma história trágica, foi bastante utilizado pelos autores elizabetanos, principalmente por William Shakespeare, que certamente não foi o criador de tal fórmula, mas possivelmente resgatou-a de manifestações populares, teatrais e semi-teatrais - das baladas, gestas, dos espetáculos jogralescos, das epopéias e do romanceiro, tanto de sua época quanto de épocas mais remotas,- e também da tradição cômica popular que já existia nos tempos remotos. Mikhail Bakhtin aborda este assunto da seguinte forma,
"A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia."[1]
No Renascimento, com o despertar do interesse pela teoria da arte dramática com inspiração na Arte Clássica Grega, que se tornou maior com o Classicismo Francês, muitos teóricos mostraram-se interessados em reinterpretar, às vezes até de maneira equivocada, a Arte Poética de Aristóteles. Muitos destes teóricos renascentistas se debruçaram especificamente sobre o gênero da comédia, ainda que tenham restado poucos fragmentos a respeito deste gênero literário na Arte Poética de Aristóteles. Quanto a este aspecto é relevante citar o estudo de Marco de Marinis, intitulado Aristóteles teórico do espetáculo:
"[...] Se de fato tentamos ver o mundo pelo qual a tradição classicista simplificou (e deformou) a contribuição conceitual da Poética, constatamos facilmente que - no que se refere à teoria teatral - este foi reduzido em substância em três pontos: 1) a teoria da catarse, 2) a teoria das três unidades e, 3) a identificação teatro= texto escrito. Não é exagero afirmar que nenhuma destas três pretensas teorias Aristotélicas (ao menos em suas respectivas vulgatas) resiste a uma verificação apenas um pouco atenta do texto: estes são, portanto o resultado de uma simplificação e de uma deformação dogmática normativa".[2]
Nos estudos de muitos desses teóricos classicistas vieram embutidas diversas afirmações preconceituosas. O italiano Antonio Sebastiano Minturno, bispo de Ugento (falecido em 1574), em sua ampla discussão sobre os preceitos da Poética de Aristóteles, em sua obra De Poeta (1559), preconizou na época que os gêneros dramáticos deveriam se diferenciar pelos tipos de desfecho e pelos tipos de caráter e acrescentou que na tragédia só deveriam existir os grandes homens, que faziam parte da aristocracia. Já os mercadores e a gente comum só deveriam existir na comédia, e as pessoas humildes, desprezíveis e ridículas, estariam presentes no drama satírico, gênero este que normalmente inseria em sua trama, situações de crítica social e política.[3] O próprio texto aristotélico diz o seguinte:
"A comédia é uma imitação de maus costumes, não os piores, - e antes uma pintura somente do vergonhoso em que se inclui o ridículo. O ridículo provém de um defeito e de uma tara que não representam um caráter corruptor ou doloroso. Tal é o caso de uma máscara feia e disforme, sem ser ocasionadora de sofrimento." [4]
É claro que os preceitos de Aristóteles a respeito do gênero da comédia não foram interpretados ao pé da letra pelos teóricos posteriores a ele, porém não cabe neste momento, nem tampouco neste contexto, discutir as interpretações posteriores à Arte Poética de Aristóteles. Antes o que se pretende é refletir sobre a importância do gênero cômico como propagador da arte popular, mais especificamente do teatro popular, criador de tipos e personagens que jamais foram esquecidos através da história e que foram os maiores inspiradores dos grandes autores da cultura oficial. Porém não podemos deixar de mencionar que o estudo do cômico foi e ainda é prejudicado por conta do preconceito que se instalou sobre este gênero, que sofre ainda maior desprezo quando está associado à cultura popular.
Nem mesmo François Rabelais, que é considerado um autor clássico, conseguiu se livrar do estigma de "autor menor", por ter fundamentado sua obra nas tradições da cultura popular. Acredita-se que por este motivo sua obra tenha sido tão incompreendida pelos críticos da cultura oficial. A este respeito Bakhtin entende que:
"Se Rabelais é o mais difícil dos autores clássicos, é porque exige, para ser compreendido, a reformulação radical de todas as concepções artísticas e ideológicas, a capacidade de desfazer-se de muitas exigências do gosto literário profundamente arraigadas, a revisão de uma infinidade de noções e, sobretudo, uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular que tem sido tão pouco e tão superficialmente explorada."[5]
Os espetáculos populares importados da Península Ibérica para o Brasil aqui chegaram ainda imbuídos dos elementos religiosos e moralizantes, extraídos dos autos medievais. Porém, junto ao drama litúrgico, vieram as manifestações profanas, que têm no cômico a sua maior representatividade. Sendo assim, os espetáculos populares brasileiros devem muito de sua popularidade graças à inserção de tipos cômicos que por sua vez possuem origens na Idade Média e na Antigüidade. Muitos dos personagens cômicos dos espetáculos populares e do romanceiro popular brasileiro descendem do teatro popular e profano da Antigüidade - como as farsas Atelanas, os mimos, as saturas, os versos fesceninos, das criações populares do Medievo - como os bufões, os jograis e os histriões - e também da Commedia dell'Arte. Os espetáculos populares brasileiros são herdeiros diretos de toda esta vasta e rica herança cultural européia.
Em vários momentos do Auto da Nau Catarineta, espetáculo do nosso teatro popular, os personagens Ração e Vassoura utilizam-se o tempo todo de cenas de pancadaria e de gestos associados ao baixo corporal e material, apresentam-se demasiadamente enérgicos, grosseiros e brigões. Aliás, a referida expressão "baixo corporal e material" utilizada por Bakhtin em sua obra clássica A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais reflete claramente o espírito cômico da Idade Média e do Renascimento, que se manifestava de forma muito mais espetacular do que literária, sendo, portanto diretamente associada ao gesto. Este espírito cômico espetacular, bastante difundido na Idade Média e no Renascimento, também se encontra profundamente arraigado aos espetáculos da Commedia dell'Arte. Lígia Vassalo afirma que a Commedia dell'Arte, "atinge no seu produto final uma dramatização improvisada com personagens fixos, baseada em roteiros ao invés de textos. Ela dá toda a primazia ao gesto e ao visual."[6]
Os gestos são uma marca registrada dos personagens Ração e Vassoura do Auto da Nau Catarineta. A participação dos personagens durante a cena é feita de forma mais gestual do que verbal. São gestos bruscos, escatológicos e às vezes até imorais, típicos da festa de rua da Idade Média e do Renascimento.[7] J. Volkelt confirma a teoria de Bakhtin a respeito do espírito do baixo corporal e material encontrado na festa de rua:
"A gula, a bebedeira, o suor. A expectoração, a eructação [...] tudo aquilo que se refere à expulsão da urina e das fezes. Tal comicidade é setor preferencial da literatura popular, embora se encontre também em outros escritores. Shakespeare, por exemplo, é muito mais rico neste tipo de comicidade. De uma maneira geral, Shakespeare, mais do que qualquer outro poeta, reúne uma dissolução animalesca a uma licenciosidade repleta de humor."[8]
Esta espécie de "partitura gestual" também é reconhecida nos lazzi da Commedia dell'Arte. Os chamados lazzi – que são conhecidos hoje em dia como "gags" - utilizados pelos personagens da Commedia dell'Arte, podem ser identificados nas cenas de improvisação muda, que normalmente parodiam o enredo central, com variados gestos acrobáticos entre os zanni, que são mais conhecidos como os servos Arlequim e Briguella. Estes dois personagens proporcionavam momentos hilários. Por exemplo, um dos momentos mais conhecidos era quando um deles fugia de um capitano furioso, deixando seu avental para trás.
"Havia cenas estereotipadas de reconhecimento, mal-entendido, espancamentos, disfarces e assim por diante. Peças populares de muitas partes da Europa também contêm motivos recorrentes, tais como combates, cortes, casamentos, processos, testamentos, execuções e funerais, quer isoladamente, quer em combinações."[9]
Fazendo-se um paralelo entre os lazzi da Commedia dell'Arte e os espetáculos populares brasileiros, percebe-se uma descrição cênica muito parecida na ação dos personagens Ração e Vassoura do Auto da Nau Catarineta e dos personagens Arlequim e Briguella da Commedia dell'Arte. E esta semelhança está contida justamente no caráter espetacular onde se movem estes quatro personagens. "No teatro popular, as unidades básicas não eram as palavras, mas os personagens e ações."[10]
Há um momento específico no Auto da Nau Catarineta em que os personagens Ração, Capitão e Médico ou Doutor improvisam uma cena muda que em muitos aspectos se assemelha aos lazzi da Commedia dell'Arte. O trecho é o seguinte:
‘Morte e Ressurreição do Gajeiro':
Capitão- (aproxima-se do corpo do Gajeiro e manda Ração chamar o médico)
Ração- (sai e volta em seguida acompanhado pelo Doutor)
Doutor- (examina o corpo do Gajeiro e manda Ração ir buscar a carteira-valise. Entra o Capelão, que encomenda o corpo do Gajeiro. Depois entra o barbeiro que lhe faz a barba. A cena torna-se cômica. Ração entra e entrega a carteira-valise ao Doutor. O Doutor retira uma garrafa de bebida alcoólica de dentro da valise e dá para o Gajeiro beber. Este começa a dar sinais de vida)
O médico também é um personagem cômico, porém funciona como uma espécie de "escada" para que Ração se apresente através de gestos exagerados, que não têm a menor harmonia, causando um efeito hilariante. No espetáculo representado no município de Cabedelo, segundo seus representantes: "O médico não passa de um sem-vergonha."[11]
Esta cena possui a sua integridade somente durante a representação, por ser basicamente uma cena espetacular, quase como um número de circo, e de improvisação, pois não existe um texto falado pelos atores, apenas algumas frases que são encaixadas durante a improvisação, que dão maior sentido e agilidade à encenação. Normalmente estas cenas mudas e cômicas parodiam os momentos sérios do auto, como acontece também com a Commedia dell'Arte.
A figura do médico como personagem cômico já é uma característica tradicional do repertório popular. Segundo Peter Burke "O médico como figura cômica remonta às peças de carnaval alemãs dos séculos XV e XVI." [12]:
A cura no Medievo está diretamente associada aos espetáculos de feira e de praça. Curandeiros e tira-dentes dominavam os espaços populares para venderem suas ervas e fórmulas e também para arrancarem os dentes da população. Peter Burke confirma que:
"Essa combinação entre cura e diversão é de fato muito antiga. A cura era, e em algumas partes do mundo continua a ser, uma dramaturgia social, uma encenação pública que envolve rituais elaborados." [13]
Outro teórico que também detectou a satirização da figura do médico foi Vladimir Propp, quando afirmou que:
"Uma das figuras preferidas pelos escritores satíricos é a figura do médico, sobretudo no teatro popular e nas primeiras comédias européias. O Doutor, juntamente com Arlequim e Pantalone era uma das figuras permanentes da Commedia dell'Arte italiana. No drama popular 'O Tzar Maksimiliam', o médico apresenta-se aos espectadores da seguinte maneira:
[...] Eu curo com arte.
Dos mortos o sangue tiro [...]
Arranco dentes
Escarafuncho olhos,
Este médico trata os velhos com pancadas, prescreve-lhes uma alimentação à base de estrume, etc.".[14]
Existem outras situações cômicas no Auto da Nau Catarineta, que também remetem aos espetáculos populares antigos. Trata-se de uma improvisação em cima do enredo principal, que envolve os personagens Ração e Vassoura. A cena foi descrita pelo diretor do Grupo Folclórico da Nau Catarineta de Cabedelo-PB:
"Tem uma história de Ração e Vassoura que acontece no final do auto e fala da questão da comida. É o seguinte: o Capitão do navio é muito pão-duro, esconde a comida com cuidado pra turma não comer a comida toda, porque ele é responsável pela alimentação dentro do barco. Ele controla essa parte dentro do barco e ele é muito duro, muito rígido, muito radical e o pessoal tá com fome e resolve fazer um motim. Eles jogam na sorte e vão comendo o que tem no barco - galo, cachorro, até assam uma sandália -, traçam tudo o que tem pra comer, só faltava comer a roupa de cada um. Depois que toda a comida acabou, eles tiram a sorte novamente pra saber quem vai ser comido, pois todas as provisões acabaram. Aí cai sobre o Capitão. Então o Capitão puxa a espada, aí os camaradas vão para cima dele pra matar, aí ele pede pro Gajeiro vê se encontra terra distante e começa a negociar o que tem: o capote dele, o cavalo, tudo o que ele tem de bem, até termina oferecendo as filhas e com isso o barco vai andando, aí o Gajeiro avista terra e cai desmaiado. Então o médico oferece bebida a ele e ele fica bom. Aí a viagem continua. Lá na frente o que vai acontecer é que ele vai parar já próximo onde tem terra firme e vai mandar Ração e Vassoura irem até a cidade buscar alimentação, mas toda a tripulação reclama porque os dois são dois sem-vergonha, ou seja, pegam o dinheiro e não trazem a comida, em vez disso, gastam o dinheiro no cabaré com as raparigas e com a bebida. Aí trazem uma boneca e uma rapadura para dar de presente para a tripulação, aí é confusão de novo. Essa parte termina cantando música de despedida e zombaria. Mas a comida não aparece de jeito nenhum.[15]
A figura do cozinheiro, que no Auto da Nau Catarineta é representada pelo personagem Ração, - seu adereço de cena é uma colher de pau gigante – é também muito marcante no folclore medieval e renascentista. Vladimir Propp entende que a profissão de cozinheiro é especialmente popular na literatura humorística, e que a representação dessa profissão é quase sempre feita numa comicidade um tanto laudativa.[16]
Ração é o encarregado de preparar a comida para a tripulação da nau, mas ao contrário dos grandes chefes de cozinha, executa muito mal sua atividade.
Os personagens Ração e Vassoura trajam-se à paisana, significando que representam gente do povo - diferentemente dos outros personagens que se trajam à maruja. Os dois portam utensílios domésticos como adereço - Ração segura uma colher de pau gigante e Vassoura segura o objeto que lhe dá o nome. Eles são os criados da embarcação, local onde se desenrola o enredo do auto. São representantes do homem simples, subalterno, que é capaz de encontrar diversão nos pequenos prazeres da vida, como cachaça, mulher e molecagem. São preguiçosos e desconcentrados de seus afazeres, quase sempre executam mal suas atividades domésticas, lançam mão destas funções para cantar, dançar e recitar versos, exercendo desta forma grande carisma perante o público.
A movimentação dos personagens Ração e Vassoura dentro do espetáculo é bastante livre e improvisada, o que difere dos outros personagens que seguem uma espécie de "ritual coreográfico". Já na primeira jornada do auto, onde os demais personagens se enfileiram para as suas apresentações, percorrendo todo o espaço do tablado - movimentação que tem sua origem nos Autos Seiscentistas - Ração e Vassoura estão livres para lançarem alguma gaiatice ao público ou para fazerem piruetas e malabarismos. Eles não seguem nenhuma marcação cênica, pois não fazem parte do contexto formal do espetáculo.
Logo depois da coreografia inicial da marujada, Vassoura começa a exercer o seu ofício de varrer as tábuas da embarcação. Vêm depois os dois, Ração e Vassoura, ao topo da escada armada em cima do simulacro de navio, e como mestres de cerimônia fazem sinal de que tudo está pronto para se dar o início à primeira jornada do auto.
Na décima jornada há um longo episódio quase que exclusivamente cantado pelo personagem Ração. Deitado numa esteira ele segura uma garrafa de aguardente ao lado do canto onde dorme no chão. Quando é acordado pelo Capitão, ergue-se somente após vários chamados enérgicos. Ainda sentado, começa a cantar e assim levanta-se e vem cambaleando para junto do Capitão. Sua jornada diz o seguinte:
"Eu te renego, ó vida
Que nos dá tanta canseira,
Pois sem uma bebedeira
Nós não passamos."
Como todos os personagens-tipo da comédia, Ração e Vassoura vivem uma situação típica que tem muitos pontos em comum principalmente com os personagens Arlequim e Briguella da Commedia dell'Arte e com os personagens Buccus e Maccus das Farsas Atelanas - espécie de espetáculo popular da Roma Antiga, que muitos teóricos afirmam ter inspirado a criação dos personagens da Commedia dell'Arte. O autor e pesquisador Newton Belleza confirma a afirmação acima a respeito das origens antigas da Commedia dell'Arte:
"Há várias hipóteses sobre as origens da Commedia dell'Arte, cuja existência se consolidou em Florença, Bolonha e Veneza. Supõe-se que tenha provindo dos mimos dóricos, das farsas Atelanas dos toscanos e romanos, e ainda do mimo emigrado de Bizâncio, quando de sua captura pelos turcos em 1453." [17]
Já Lígia Vassalo identifica a estreita ligação da Commedia dell'Arte tanto com a Antigüidade quanto com a Idade Média e o Renascimento. Ela afirma que: "A Commedia dell'Arte funde tradições populares antigas e medievais, como a do mimo e do jogral, com o espírito da Renascença."[18]
As semelhanças que aproximam ao mesmo tempo os personagens das Farsas Atelanas da Antigüidade, dos espetáculos populares do Medievo e do Renascimento, da Commedia dell'Arte e do espetáculo popular brasileiro, o Auto da Nau Catarineta, se resumem basicamente nas seguintes características: seus personagens são tipos fixos, sem psicologia, existe um enredo - porém grande parte da movimentação cênica destes personagens é feita de forma improvisada -, os personagens falam se dirigindo diretamente à platéia, ou quebrando o ilusionismo da cena através de situações cômicas dentro do enredo principal, o que implica numa linha épica de teatro. Porém sua característica comum mais marcante é a relação de dupla existente entre os personagens. Por exemplo: Maccus e Buccus, Arlequim e Briguella, Ração e Vassoura, Mateus e Birico, o que sinaliza uma cumplicidade entre estasduplas.
Nesta fórmula cada elemento da dupla cômica, geralmente composta por um palhaço e seu ajudante, desempenha a sua função cênica num mecanismo que funciona muito bem quando o intuito é alcançar o riso. Esta fórmula foi batizada na França como "reencontre". As semelhanças entre os dois personagens do nosso teatro popular e os personagens das heranças antiga, medieval, renascentista e da Commedia dell'Arte também são percebidas no gestual complexo e exagerado dos personagens, repletos de variados números acrobáticos, e também na fala satírica e debochada, muitas vezes grosseira e imoral.
Ração e Vassoura guardam semelhanças também com o tradicional personagem do Parvo, do Renascimento. Nascido da cultura popular, o Parvo foi resgatado por Gil Vicente em suas peças, tendo grande destaque no Auto da Barca do Inferno. Este personagem é inspiração para a grande maioria dos personagens bobos do teatro popular. Acredita-se que o Parvo, pelo próprio fato de ser ingênuo, era dotado de uma tal sinceridade que não poupava nem mesmo os clérigos e os reis. Vladimir Propp entende que:
"O bobo vê o mundo distorcido, tira conclusões erradas e com isso os ouvintes se divertem. Mas as suas motivações internas são as melhores possíveis. Todos lhe despertamcompaixão e está pronto a sacrificar tudo o que tem; por isso mesmo ele suscita simpatia. Este tolo é melhor do que muitos sábios." [19]
É relevante informar que o tronco tradicional da Commedia dell'Arte provém tanto da região de Roma e da Toscana, com as Farsas Atelanas, quanto da região de Bizâncio que por sua vez foi invadida pelos turcos, onde existia os dois personagens cômicos da peça popular orta oiunu, e as correntes tradicionais de ambas as origens, possuem manifestações teatrais e personagens que possuem muitas características em comum.
Outras semelhanças são encontradas entre os personagens Ração e Vassoura e alguns personagens cômicos interpretados por atores ambulantes do século XVI na Espanha. Estes atores ambulantes tinham em seu repertório personagens cômicos, os chamados ñaque, que eram conhecidos como dois homens que costumavam dormir com a mesma roupa que passavam o dia, também andavam descalços e nunca conseguiam matar a fome. Seus únicos acessórios eram uma barba falsa e um pandeiro.
Dentro do folclore russo Vladimir Propp identifica personagens que também guardam muitas semelhanças com Ração e Vassoura:
"No folclore russo um exemplo clássico de personagens duplos (dobrados) são os irmãos Fomá e Eremá, ambos desajeitados, absurdos, desocupados; sobre eles foram feitos inúmeros contos e canções satíricas. As de ambos terminam sempre com eles morrendo afogados." [20]
Em contrapartida, não se pode esquecer também das origens clássicas desta dupla, que podem ser encontradas, por exemplo, nas comédias de Molière e de Goldoni – que fazem uma releitura da Commedia dell'Arte - com seus empregados espertos e encrenqueiros e nos graciosos, criados cômicos do Século de Ouro Espanhol, encontrados na obra de Lope de Veja. Há também vestígios desse tipo de personagem na Comédia Nova de Menandro e também na Comédia Latina de Plauto e Terêncio. A comédia considerada pelos teóricos como a comédia oficial possui laços muito mais profundos com o teatro popular do que nos foi relatado por muitos teóricos e historiadores do teatro. Segundo Vladimir Propp:
"Se examinarmos com atenção as comédias clássicas reconhecidas como 'elevadas', verificaremos facilmente que os elementos de farsa permeiam todas. As comédias de Aristófanes têm um forte conteúdo político, mas é preciso, ao nosso ver, remetê-las ao domínio da comicidade 'baixa', 'vulgar', ou como se costuma dizer às vezes, 'exterior'." [21]
Uma outra característica determinante desses personagens cômicos é o seu enorme desejo de ascender socialmente, não obstante pretendem alcançar a fortuna através da forma mais fácil, ou seja, por intermédio da malandragem. Esta característica é típica dos personagens populares brasileiros, a exemplo de seu maior representante, Pedro Malazarte. Estes personagens não admitem sua condição de subalternos, nem tampouco admitem serem explorados pelos patrões. A malandragem é típica da farsa, que por sua vez, é a base do teatro cômico popular.
Lígia Vassalo confirma que é característico da farsa a introdução de personagens espertalhões e cheios de ardis. Estes personagens, que na maioria das vezes agem em dupla: Ração/ Vassoura, do Auto da Nau Catarineta, Birico/ Mateus, do Bumba-meu-boi, Maccus/ Buccus, das Farsas Atelanas, Arlequim/ Briguella, da Commedia dell'Arte, adotam esta postura como forma de se defenderem de uma sociedade hostil e injusta.[22]
No Auto da Nau Catarineta há uma jornada em que Vassoura, cansado de levar ordens do Capitão, canta:
"O Vassoura e o Ração
Não são negros de senzala;
São brancos que se apresentam
Nos dias de grande gala."
A memória popular guarda com orgulho e muito carinho a lembrança dos atores que encarnaram com virtuosismo e espontaneidade os papéis de Ração e Vassoura. Acredita-se que esta associação feita entre atores e personagens existente em nosso teatro popular explique-se pelo fato de que o público que assiste às representações populares tradicionalmente relacione os personagens dos espetáculos que assistem com a figura do ator que representa estes personagens. Desta forma, a linha que separa os personagens Ração e Vassoura de seus representantes, ou melhor, de seus atores, é bastante tênue. A este respeito, o relato de Piotr Bogatyrev esclarece que:
"O contador utiliza, como um processo criador, suas próprias qualidades, tais como elas aparecem em sua vida. Os irmãos Solokov observam, que o contador Sozon Kuzmich Petrushevich, alvo de todas as troças e brincadeiras de mau gosto, introduz a si mesmo na história sob os traços de Ivanushka, o bobo: ‘Era uma vez um camponês, e ele tinha três filhos, dois eram maus, e o terceiro era bobo, como eu, Sozon'. Prossegue descrevendo o lamentável aspecto de Iva, o bobo, seguindo manifestamente seu próprio modelo: ‘ranhoso, babão', e com essa ilustração viva provoca sem querer uma enorme explosão de risos em seus ouvintes. O mesmo acontece no teatro popular: os espectadores comparam incessantemente o papel que o ator aldeão está representando, com sua vida privada." [23]
Não há como camuflar, como parece pretender o teatro de tendência ilusionista, a presença viva do ator em cena. Nem mesmo o figurino, a maquiagem, o cenário e uma luz apropriada são capazes de transformar o ator numa outra pessoa. O teórico Piotr Bogatyrev mais uma vez esclarece que:
"Ainda que o ator exprima pelo traje a dignidade real, pelo andar sua idade avançada, pelo discurso a sua qualidade de estrangeiro, etc; não vemos nele apenas um sistema de signos, mas sim um ser vivo. Para nos convencermos de que é realmente assim, basta pensar no que acontece quando um espectador observa sobre o palco, um ator que lhe é chegado. Ex.: quando uma mãe olha seu filho representando o papel de um rei [...]. Este desdobramento particular produz um efeito teatral considerável no teatro popular, no qual os espectadores conhecem bem seus atores." [24]
O público que assiste com freqüência aos espetáculos populares, se comporta diante do espetáculo de maneira muito diferente do público do teatro ‘oficial'. Ele não está lá para simplesmente ouvir o desenrolar daquela história, pois certamente já a conhece de cor, uma vez que é sempre representada nos festejos oficiais da igreja e mesmo em festejos profanos. O que este espectador busca nos espetáculos populares é o esmero dos detalhes. Ele não possui uma relação de identificação com o personagem, o efeito é muito diferente daquele que acontece com espetáculos fundamentados na empatia. O espectador dialoga com o que lhe dizem os atores dos espetáculos populares - certamente seus conhecidos ou parentes - e participam do espetáculo.
Ração e Vassoura, personagens do Auto da Nau Catarineta são os encarregados de entreter a platéia, com constantes discussões e brigas espalhafatosas, descarregando injúrias, escorregando e se ‘estabacando' pelo chão, sempre levados pelo improviso que é sua marca registrada.
Uma outra característica marcante diz respeito ao fato de provocarem e desafiarem a platéia, debochando muitas vezes de sua situação econômica e de seu ambiente. O público, porém, reage sempre num tom de brincadeira, a platéia sempre "perdoa" aqueles que são o seu espelho e que revelam os seus defeitos e fragilidades.
Estes dois personagens constituem a dupla da inteligência, da improvisação chistosa, desembaraçada e com prontidão verbal que é típico dos personagens da Antigüidade e do Medievo, bem como da Commedia dell'Arte, que chegaram até os dias atuais por intermédio da literatura oral. Segundo Renato Almeida em A Inteligência do Folclore: "Nas velhas farsas estão os elementos do cômico eterno que segundo Bérgson, vai dos palhaços de circo, aliás, grandes portadores do folclore, aos efeitos mais requintados das comédias." [25]
Por detrás da sábia abordagem estética do riso e do esquisito, o povo expressa suas revoltas contra o sistema imposto por aqueles que detêm o poder.
Em artigo intitulado O Teatro Medieval, o pesquisador e professor de teatro José Da Costa faz uma pequena análise a respeito da máscara cômica nos bobos e bufões da Idade Média:
"Também os representantes do riso, ou seja, os bobos e os bufões, tinham direitos especiais de licença para criticarem o clero, os reis e os nobres, para escarnecerem dos rituais religiosos e das cerimônias oficiais. Essas críticas não seriam perdoadas se viessem em tom de seriedade. É como se, por serem cômicos, não fossem para valer, não objetivassem mudar a ordem das coisas."[26]
Ração e Vassoura, Birico e Mateus, Briguella e Arlequim, Maccus e Buccus, os ñaque, as duplas cômicas do folclore russo são personagens que representam uma estética muito particular, uma espécie de estética do riso, que possui características diretamente ligadas ao espírito crítico das sociedades humanas que reagem sempre às injustiças sociais. A respeito da relação entre o cômico e a crítica social e política, assim coloca Renato Almeida: "No fim da Idade Média as farsas ganharam grande prestígio: um cômico jocoso, satírico, de sal grosso, que deliciava os auditórios, com muitas alusões políticas." [27]
O cômico e a crítica andam sempre juntos, aliás, é relevante apontar que a crítica social é muito mais facilmente despertada através da utilização da comicidade, que está presente na grande maioria dos espetáculos populares. O humor não é gratuito no teatro popular, quase sempre ele vem "embutido" numa idéia crítica. Esta idéia desperta uma espécie de riso satírico, que debocha de tudo e de todos, onde nem mesmo o ator, o representante do discurso crítico, está imune ao riso satírico do teatro popular. "Uma qualidade importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores."[28] Toda a crítica é permitida através da utilização da "máscara" cômica. Segundo o estudo de Lígia Vassalo, "os baluartes do sistema, como os patrões, os juizes e os sacerdotes, aparecem desmistificados pela caricatura. Ridendo Castigat Mores, mas é também o riso que dilui a crítica social."[29]
Importa observar que o cômico no teatro popular funciona como um portal que separa o psicologismo da problemática real, preconizando a estética do teatro épico. Acompanhando esta diretriz de pensamento, o teatrólogo pernambucano Hermilo Borba Filho, numa série de documentários a respeito da relação dos artistas populares com o teatro épico, escreveu sobre um certo capitão do Bumba-meu-boi: "Ele me ensinou tudo o que sei sobre Teatro Anti-Ilusionista, muito antes de Brecht, muito melhor que Brecht." [30]
A estética épica identificada no teatro popular brasileiro pode guardar algumas relações com as máscaras e as maquiagens dos personagens cômicos, que é um recurso de encenação bastante utilizado pelo criador popular, talvez pelo fato da máscara e da maquiagem exercerem no espectador um afastamento da fisionomia do ator, o que levaria este espectador a um distanciamento do mimetismo psicologizante e que não por coincidência também foi utilizado pelos atores da Commedia dell'Arte, da Antigüidade e do Medievo.[31]
Nos limites deste estudo entendemos que o Auto da Nau Catarineta deve ser considerado como um autêntico espetáculo brasileiro, dotado de complexa e criativa estrutura dramática, que não deve mais ser visto como arte primitiva. A este respeito Borba Filho tece o seguinte comentário:
"O teatro brasileiro precisa ser descoberto, pouco se tem feito nesse sentido e essas formas primitivas de arte popular fornecerão um mundo de sugestões que poderão ser transpostas para o palco sem prejuízo de sua pureza e essência"[32]
O Auto da Nau Catarineta conserva, através de seus personagens Ração e Vassoura, autênticas recriações dos grandes personagens cômicos universais. Eles são elementos fundamentais no contexto de um espetáculo que possui estética própria e original. Ração e Vassoura são representantes desta fascinante aventura que é o teatro popular que nunca fenece, mas se transforma, rompendo as barreiras do tempo, da língua, dos costumes, um teatro que se brinca, que se vive.
Notas:
[1] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993, p.05
[2] MARINIS, Marco de. Aristotele teorico dello spettacolo. In: Teoria e Storia della Messinscena nel Teatro Antigo. Trad.: Tânia Brandão. Atti del Convegno Internazionale. Torino, 17/10. Aprile, 1989. Centro Regionali Universitario per il Teatro del Piemonte. Edizione Costa e Nolan, 1991.
[3] CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. Trad.: Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997, p.42.
[4] ARISTÓTELES Apud: BELLEZA, Newton. Teatro Grego e suas Conseqüências: raízes do teatro. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1966, p.65
[5] BAKHTIN, op.cit, p.03
[6] VASSALO, Lígia. O Sertão Medieval: origens européias do teatro de Ariano. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p.126
[7] O espetáculo é representado na Fortaleza de Santa Catarina, pelo Grupo Folclórico da Nau Catarineta em cabedelo-PB
[8] VOLKELT, J. System der Aesthetik, I-IV. München, 1905-14. Apud PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. Trad.: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992, p.21
[9] BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Trad.: Denise Bottmann (2ª edição). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 159
[10] BURKE, ibidem
[11] Citação do diretor Tadeu Patrício do Grupo Folclórico da Nau Catarineta de Cabedelo-PB.
[12] BURKE, op.cit, p.110
[13] BURKE, ibidem, p.119
[14] PROPP, op.cit, p.82
[15] Entrevista com o Grupo Folclórico da Nau Catarineta de Cabedelo-PB
[16] PROPP, op.cit, p.80
[17] BELLEZA, Newton. Teatro Grego e suas Conseqüências: raízes do teatro. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1966, p.106.
[18] VASSALO, op.cit, p.126.
[19] PROPP, op.cit, p.113.
[20] PROPP, ibidem, p.57
[21] PROPP, ibidem, p.22
[22] VASSALO, op.cit, p.125.
[23] BOGATYREV, Piotr. In: (org): GUINSBURG, J; NETTO, J.Teixeira Coelho e CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978, p.88.
[24] BOGATYREV, ibidem
[25] ALMEIDA, Renato. A Inteligência do Folclore. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1975, p.80
[26] DA COSTA, José. In: O Teatro Através da História, volume I: O Teatro Ocidental. Rio: Centro Cultural Banco do Brasil e Entourage Produções Artísticas LTDA, 1994, p.45.
[27] ALMEIDA, ibidem, p.82
[28] BAKHTIN, op.cit, p.10
[29] VASSALO, op.cit, p.161.
[30] BORBA FILHO, Hermilo. Arte Popular e Dominação: o caso de Pernambuco-1961/77. Recife: Alternativa, 1978. Apud CIRANO, Marcos; ALMEIDA, Ricardo de; MAURÍCIO, Ivan, p.45.
[31] ROUBINE, Jean- Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998
[32] BORBA FILHO, Hermilo. In: Folha da Manhã. Recife, 11 de outubro de 1947
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