sábado, 3 de abril de 2010
Entrevista com Luis Alberto de Abreu
Fonte: Portal da Cooperativa Paulista de Teatro
Luís Alberto de Abreu — A minha experiência com teatro de rua não é muito grande. Começou em Tiradentes (MG) com um projeto muito interessante sobre a história da cidade e das personagens que tinham passado por ela. De certa maneira era uma celebração aos moradores de Tiradentes, os que já tinham morrido. Isso era feito na rua e o cenário era a própria fachada da casa dessas pessoas. Para mim, essa foi uma experiência muito importante.
Depois eu comecei um projeto de pesquisa do teatro de rua com a Claudia Schapira aqui na ELT, onde a gente pesquisou sobre a dramaturgia de teatro de rua. Daí pra frente, eu tenho me aproximado cada vez mais.
Fora todo o estudo da tradição do teatro brasileiro, que tem muito a ver com a rua, das festas, de uma liturgia de rua, de encenações de rua que seria muito interessante a gente recuperar para essa nova prática de teatro de rua que está havendo no Brasil.
Portal — No ano passado, a convite do Movimento de Teatro de Rua de S. Paulo, Amir Haddad aventou que, hoje em dia, a saída para o que ele chama de "teatro morto" seria o teatro de rua, pelo resgate do contato do artista com a sua "matéria-prima"...
Abreu — O Amir Haddad é um sujeito respeitável. Concordo com a opinião dele no sentido de que na rua a gente tem um contato com outro tipo de público. E nesse sentido a gente aprende muito. É um público completamente liberto, que não está preso pelo ingresso nem pela convenção educada de se assistir e de se aplaudir no final. Então, para o artista, é muito interessante porque, na verdade, ou ele segura e interessa a pessoa de fato ou ela vai embora, porque tem outras coisas para fazer.
Nesse sentido, o teatro de rua é muito rico. Esse público é muito rico. E eu concordo com o Amir Haddad que o teatro de rua pode renovar completamente a relação teatral que existe. Eu não sei se o palco italiano está morto ou não. Mas acho que muito do maneirismo, tanto na dramaturgia como na encenação quanto na interpretação, e muitas das convenções que ele adquiriu estão mortas. O teatro de rua tem força para sacudir o palco italiano.
Aliás, quando a gente fala de teatro de rua, a gente devia falar de teatro de palco italiano, porque o teatro mesmo é rua. Essa relação humana é fundamental, isso é o Teatro. O teatro italiano é só uma parte desse grande teatro, dessa grande relação humana direta que existe no mundo.
Portal — Tem-se discutido muito da questão da dramaturgia especificamente direcionada para a rua, que mistura um monte de ansiedades em nome de teatro de rua. Houve colegas que citaram o fato de hoje em dia ter virado moda confundir teatro de rua com bumbo, perna-de-pau ou nariz vermelho – que também são ou não são dramaturgia para a rua. Como o senhor vê essa questão, dentro e fora do Brasil? Há alguma luz apontando nesse sentido?
Abreu — Na pesquisa de dramaturgia da rua ou nos apontamentos que eu tenho sobre dramaturgia para a rua, a minha referência é sempre as festas populares, o teatro de rua das cheganças, da marujada...
Eu pego o Mário de Andrade e fico lendo essas dramaturgias, esses grandes espetáculos de rua, e fico tentando entender – já que a gente não tem mais, ou está muito distante – o pouco que ficou. Isso não é nem mesmo uma pálida imagem do que era mesmo no século 18.
Eu fico tentando imaginar qual seria a dramaturgia de rua. E eu tenho aprendido muito, ali, no sentido de que a poesia é um elemento muito forte para a dramaturgia da rua. Acho que quem trabalha na rua não pode descurar da poesia, que é um elemento muito forte. A música é um elemento muito forte, o corpo é um elemento muito forte. Isso sempre foi muito forte, na rua.
Nesses espetáculos populares, que era o nosso teatro de rua, isso orientou toda uma dramaturgia. Como eu disse, eu não conheço muito, não tenho muita experiência sobre teatro de rua, mas toda vez que eu penso em fazer ou vejo espetáculo de rua, eu sempre foco nesses elementos fundamentais que é a poesia, a música (o canto, obviamente) e o corpo. Isso me parece que é fundamental.
Todas as outras coisas são acessórios muito interessantes.
Portal — Inclusive o texto.
Abreu — O texto vem no canto, vem na narrativa. A gente pega, por exemplo, uma chegança ou uma nau catarineta, é tudo em versos. O texto está no próprio canto e, quando não está no canto, está nos diálogos, que são versificados, como acontece no teatro vicentino, que tinha um pé no palco e outro pé na rua.
A rua estava muito próxima do teatro de Gil Vicente. Quer dizer, esse teatro italiano e espanhol, esse grande teatro ibérico, ele tem muito a ver, a gente pode aprender muito com ele. Eu não iria reinventar o teatro de rua.
Eu iria me aproveitar desses fundamentos que estão aí e eu tentaria retrabalhá-los, na dramaturgia, para o tempo de hoje, para as relações de hoje. Obviamente a gente aprende a fazer teatro de rua fundamentalmente fazendo, não é? É dessa relação. Mas eu acho que não custa a gente ter alguns parâmetros.
O teatro ibérico dos séculos 16 e 17 é fundamental, para mim, porque estava muito próximo do teatro medieval, que era rua. E as festas populares. Conseguir ver uma nau catarineta e abstrair qual é a dramaturgia daquilo, como aquele espetáculo foi pensado para segurar esse público flutuante, que passa.
Obviamente aí tem uma série de outros elementos, corais, que são muito importantes também. Figurinos. Ocupação do espaço. Tem tudo isso, mas são elementos que compõem a dramaturgia.
Portal — Na cidade de São Paulo, o Movimento de Teatro de Rua (em consonância como movimento da Bahia, do Recife) vem buscando um pensamento, propiciando que os grupos atuantes se conheçam, se assistam e discutam sobre seus trabalhos sem critérios de julgamento. Qual é a tua opinião sobre a importância disso?
Abreu — É precioso um movimento nesse sentido. Na época em que eu comecei a fazer teatro, no final da década de 70, o teatro era feito tão-somente, invariavelmente no palco, com pouquíssimas experiências de teatro de rua.
E, de repente, o palco, as casas de espetáculo são limitadas, em número, inclusive. Não estão respondendo mais à efervescência cultural que existe nesse país. Existem muito poucos espaços para as necessidades do teatro.
Eu acho que um movimento de teatro de rua é uma resposta, mesmo. Quer dizer, a gente não precisa de um espaço-teatro, o Teatro não é um prédio, ele é um lugar que se convencionou para esse encontro importante, ritual e fundamental. Essa consciência quem nos trouxe foi os espetáculos desses grupos que foram para a rua, falando: não, o teatro é muito mais.
Como dizia o Calderón de La Barca, "o mundo é o teatro". Eu posso transformar qualquer espaço em teatro, desde que eu tenha um espetáculo e um público. Então isso foi muito rico, e abre um caminho enorme para o trabalho do artista, de ir ao encontro do público.
Teatro convencional, em palco italiano, a 60 reais o ingresso? Impossível. Uma cultura não sobrevive com isso. Mesmo com 200 ou 300 teatros desse, a sessenta paus não se faz cultura. Nem nesse país e nem, talvez, em qualquer país da Europa. A saída para a rua é o diálogo direto com o pulso do público, com o pulso da contemporaneidade. Daí saem muito mais coisas do que ficar encerrado dentro do palco italiano.
Portal — E não somente a questão do custo do ingresso. Mas também a questão de o teatro de rua interferir no cotidiano, como é o caso do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos ou do Grupo XIX de Teatro, por exemplo, que se propõem a enfocar e transformar a realidade naquele momento, criando determinados estados-de-espírito das pessoas seja numa vila industrial ou no Viaduto do Chá. Há esse tipo de importância. Agora, para que isso venha mais e mais à tona, qual é o seu ponto-de-vista sobre políticas culturais voltadas para o teatro de rua.
Abreu — Política cultural é importante, mas a questão cultural só pode ser resolvida pelos produtores culturais, ou seja: os grupos que fazem. Eles não devem esperar isso. Muito pelo contrário, eles devem começar a fazer, a se articular e a exigir.
O primeiro ponto, fundamental, é fazer e, a partir daí, se articular para exigir uma política cultural, que não virá "do alto". Não é político que vai resolver a questão cultural no país: são os produtores de cultura.
O primeiro estágio é fazer, mesmo, essa interferência direta. Isso é fantástico, porque cria realmente para o país uma paisagem cultural, além da paisagem de prédios, de pessoas andando na rua e tal. É uma paisagem cultural, o que é de fundamental importância.
Uma pessoa caminha pelo Viaduto do Chá, por exemplo, e passa por uma experiência diferenciada que ela não tem na vida e não vai ter em nenhum outro veículo de informação. A exigência de políticas culturais, portanto, é fundamental, mas tem que partir de uma articulação dos produtores de cultura — e não do discurso de "pedir verba".
Não. Precisa-se pensar projetos. Uma política cultural, como foi pensada e feita o Programa de Fomento para o Teatro na Cidade de São Paulo. Aí sim, o produtor cultural ele tem uma força, de colocar, de exigir e de discutir uma verdadeira política cultural.
As políticas culturais geralmente são abarcadas por políticos. Não. É questão, é desafio para os produtores de cultura.
Portal — Qual é a tua opinião sobre leis de incentivo, que colocam nas mãos da "lei do retorno", da iniciativa privada, os critérios sobre o que é e o que não é bom?
Abreu — Eu não vejo o que essas leis de incentivo trouxeram de benefício para a cultura. Trouxeram benefício talvez para alguns produtores de cultura, talvez para alguns proprietários de teatro ou de cinema.
Mas eu não vi a grande transformação que tenha vindo através das leis de incentivo. Não estou falando para se acabar com elas, não. Mas para nortear a produção cultural por outros caminhos. Apoio por outros caminhos, por outras fórmulas. Aí eu acho que são os produtores de cultura, mesmo, que vão ter que fazer isso.
Senão, a gente corre o risco de ter muitas leis de incentivo, com muito dinheiro e com muito poucos produtores culturais com acesso a elas. E, na verdade, é isso o que acontece, não é? No cinema, no teatro.
Tem uma infinidade muito grande de grupos de teatro, de gente querendo fazer cinema, mas que não tem acesso aos benefícios das leis de incentivo. Então, que política cultural é essa? Restrita, não é? É necessário uma política cultural que atenda à produção e à qualidade desta.
Portal — À produção e à pesquisa também...
Abreu — Com certeza. Não há como separar uma coisa da outra. Não dá para chamar de produção a reprodução: "não, então eu vou montar tal peça". Não, isso não é pesquisa. A pesquisa é novos caminhos, um novo contato com o público, novas formas do fazer teatral me parece que é muito mais importante do que uma lei de incentivo.
Eu pego uma Lei Rouanet e, se eu conhecer aí algum grande empresário interessado em escorregar uma verba, ali, então eu consigo produzir. Quem não tem esse acesso não consegue. Ou quem tem um espetáculo que não seja do interesse dele.
Principalmente se for teatro de rua. Que grande empresa está interessada em teatro de rua, onde grande parte do que é feito não é previamente estabelecido? Corre o risco de a Shell patrocinar um espetáculo de teatro de rua em que o sujeito vai falar contra a Shell!
O teatro de rua é muito livre, nesse sentido, quanto à interação direta com o público. Isso aí talvez não interesse a quem vai trabalhar com uma lei de incentivo. Eu não diria para acabarmos com ela mas o foco fundamental não deve ser as leis de incentivo, com certeza.
posted by Núcleo de Teatro de Rua ELT at 8:19 AM | 8 comments
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